COMEÇAR BEM A VIDA ACADÊMICA É FUNDAMENTAL


Flávio passos
Com as políticas de ações afirmativas no ensino superior – a política de cotas -, o Brasil promove a presença de um novo perfil de universitários em todas as áreas de conhecimento. A juventude cotista, além de ainda ser minoria em seus novos espaços de estudos, não traz na bagagem o acúmulo de trajetórias familiares nesse campo. E os desafios da vida acadêmica vão se apresentando logo após a matrícula. Nesta  perspectiva, começar bem significa tomar consciência da dimensão do ser acadêmico, bem como do significado social desta transformação pessoal e coletiva.  

Entre o impacto e o ambientar-se
Algumas mudanças na vida são tão radicais que precisam ser refletidas, pensadas, medidas. E mesmo assim, elas virão com a novidade que traz muitas transformações. O início de uma nova etapa de aprendizagem exige um processo de adaptação e de redimensionamento da própria vida. No caso do ingresso no ensino superior, apenas o vestibular não credencia o calouro (a caloura) a entrar com os dois pés, mente e coração nesse novo universo. 
Nos últimos doze anos, com o avanço das políticas de ações afirmativas no ensino superior – conhecidas como políticas de cotas –, surge um novo perfil étnico-racial e social das universidades públicas. No entanto, o ingresso de pobres, negros, indígenas e quilombolas na universidade não significa uma automática emancipação de suas famílias e comunidades, pois tal acesso pode vir acompanhado de uma atitude de virar as costas para as próprias origens. 
A juventude cotista, na maioria das vezes, além de ainda ser minoria em seus novos espaços de estudos, não traz na bagagem o acúmulo de trajetórias familiares nesse campo. Alguns passaram no vestibular e, nos primeiros meses de estudos, ainda estão “processando a informação”. Outros, tentando adequar sua nova vida à velha realidade de ter que sobreviver em uma sociedade altamente urbanizada com custos de vida cada vez mais complicados.
A universidade é um mundo à parte. E, quando se trata de jovens negros, da periferia, da zona rural, quilombolas e indígenas, a mudança ainda é mais impactante.  Ainda mais por conta da forma como muitas escolas públicas ainda lidam com a perspectiva do acesso ao ensino superior por parte de seus alunos. 
Logo na primeira semana de aula, os desafios vão se apresentando. Desde se localizar geograficamente dentro de algumas instituições, seja pelas suas dimensões geográficas, seja pela própria acolhida por parte dos órgãos institucionais, muitas das vezes por pressuporem que o novo aluno já tenha uma visão suficientemente definida do que seja ser universitário. E também pela natureza de alguns trotes que teimam em continuar imperando. 
Momento do neoacadêmico conhecer os novos colegas, de adaptar-se ao ritmo das leituras, de compreender a linguagem acadêmica dos professores universitários, de começar a conciliar o tempo pessoal e a execução dos trabalhos acadêmicos, de familiarizar-se com a estrutura da vida acadêmica que vai muito além da restrita vivência numa sala de aula – vício adquirido na maioria das escolas públicas. Momento propício de aprender o prazer de estar na biblioteca. Em breve, vai perceber a necessidade de ambientar-se em outros universos que compõem a universidade – dentre eles, os projetos de extensão, os seminários da sua própria e de outras áreas, as visitas a campo –, etc.
O programa do curso: um roteiro de viagem
É nesse período que o ingressante recebe, em sua caixa de correspondência eletrônica, um roteiro de viagem: o programa do curso. Entendê-lo em sua estrutura, como quem projeta uma casa ou a confecção de um bolo, pode ser um passo fundamental no êxito da jornada que se inicia. 
Um programa curricular de qualquer curso acadêmico tem uma estrutura que podemos percebê-la em quatro grupos de disciplinas: as chamadas propedêuticas, as irmãs das primeiras, denominadas de pré-requisito, as próprias, específicas daquele curso e as que podemos enquadrar enquanto “práticas”. Quatro grupos que se juntam em dois: as fundamentais e as específicas. Um grande risco é subestimar a importância de qualquer desses grupos. As disciplinas complementam-se, num diálogo crescente.
No caso das do primeiro grupo, são a base e as vigas da casa lhe dando sustentação. E são bem aquelas que, como em um edifício ou mesmo em um bolo confeitado, não aparecerem na prática profissional, mas que sem estar bem consolidadas, comprometem toda a estrutura do aprendizado.
É neste momento que se vai percebendo o terreno onde serão construídas as etapas da aprendizagem. A interpretação de textos e a compreensão dos conceitos-chave do curso e da área remetem à necessidade premente de aprimoramento da leitura e da construção textual. Enquanto se prepara a massa, concomitante se reforça o solo que irá receber o peso maior. Por isso que muita gente patina principalmente nas disciplinas que são pré-requisitos para os próximos passos. Porque, como em tudo na vida, começar bem é fundamental para um bom êxito. 
O segundo grupo de disciplinas, como as paredes e as instalações hidráulicas, definem o corpo principal do projeto profissional e da carreira acadêmica. A leitura densa marca esse momento. É a substância principal da estruturação de um saber seguro. Os clássicos da área e do curso são imprescindíveis. Ir para frente apenas com os comentários de autores ou alguns capítulos autorais lidos em sala de aula, coloca em risco a firmeza do conhecimento acadêmico. 
Na graduação, ainda se tem uma visão generalista dos vários temas, das disciplinas que compõe a grade, dos autores, das linhas ideológicas ou teóricas. Mas, essas disciplinas do núcleo central, a gema do ovo, é que darão consistência à formação. 
Consistência que será fruto persistente de um empenho pessoal do ser estudante, pois o grande perigo em qualquer curso é que é possível o aluno – sem iluminação – atravessá-lo sem que o curso atravesse pelo estudante. Para quem não tem uma bagagem reserva – uma educação bem estruturada na formação básica – o melhor é buscar se superar durante todo o curso, principalmente nas disciplinas mais elementares. E, assim, não cair na mediocridade. E aí chega a hora de se fazer algumas prioridades, principalmente na administração do tempo pessoal. 
Neste momento, começa-se a perceber que grupos de pesquisa, congressos, projetos de iniciação científica, por exemplo, garantirão o algo a mais – o teto – que já pode ser alicerçado numa perspectiva também de projeção, de futuro da vida acadêmica que não se esgota, nem no entre muros da instituição, nem na defesa da monografia ou na festa da formatura. 
Para quem vem de uma condição na qual concluir o ensino médio parecia ser “fim da linha”, estar em uma graduação deveria ser encarado como uma possibilidade de projeção para voos mais altos. 
Por fim, e sem querer colocar ponto final, tem as disciplinas que são como que o acabamento, a cobertura do bolo, aquela dimensão do aprendizado que está numa perspectiva da estética, do saber fazer, do como se portar enquanto agente profissional daquela área. É a prática que começa a se elucidar mais objetiva. É neste momento que se aprende a ser eficiente. 
Para além da academia
O profissional – ou o intelectual – não se define nas disciplinas mais “práticas”; nesse momento, ele apenas se molda. A definição da qualidade profissional de uma pessoa formada num curso de graduação – ou pós-graduação – se dá durante todo o processo de aprendizagem. Principalmente na dimensão ética, considerando que todas as profissões são uma forma de realização pessoal, mas também de transformação da realidade, de acúmulo de experiências do vivido, de interação com outras dimensões da vida, na possibilidade de, a partir daquela área de atuação, poder incidir na melhora da vida humana, seja no âmbito local, seja no global.
E, como em toda casa, a mobília também compõe a dimensão do sentido, do morar, do habitar. O que se aprende num curso é muito restrito, perto de todo o conhecimento produzido pela humanidade e abordado em todos os cursos e áreas da academia. O que a pessoa vive na dimensão política, social, cultural, humana, religiosa e familiar são aprendizagens que também determinam esse conteúdo diferencial que vai além da universidade em si. 
São vivências que vão além da formação formal, esta em muitos casos, meramente tecnicista e que acaba por se transformar em terreno fértil para a eclosão de posturas “coxinhas”, alienadas, indiferentes, individualistas, sem nenhum tipo de utopia.
Aprender uma arte, uma atividade lúdica ou mesmo um ofício fora do campo estrito de formação, são possibilidades de se romper com uma formação reducionista, a qual pode levar a ser um ótimo especialista num determinado assunto ou ciência, mas que também pode alienar ao se esvaziar de sentido na medida em que não alimenta a alma, a leveza, o político e o estético que nos definem muito mais que o mero laboral, ao nos ajudar a romper com uma perspectiva prosaica do estarmos aqui.
Ir ao teatro, ao cinema, fazer um passeio na natureza, cultivar amizades, valorizar a família e as próprias raízes, a identidade ou o compromisso de classe, conhecer e participar de algum movimento coletivo, conhecer alguma bandeira de luta pela dignidade humana, manter contato com diversas formas de arte, especialmente a literatura e a música, ampliar a visão crítica dos fatos que são vivenciados de forma tão automatizada neste mundo globalizado e midiático. Até mesmo redimensionar o uso das redes sociais, das pesquisas virtuais, do conhecer ou criar blogs, pode ser um “a mais”.
São conteúdos que nos ajudam a sermos mais humanos, para além do profissional. A sermos mais profissionais, à medida que cuidamos também das dimensões múltiplas do humano. A universidade é bem esse momento propício para um abrir-se para a diversidade humana ao seu redor. Segundo o pensamento de Michel Serres, em seu livro “Hominescência” (Editora Piaget, 2004), a universidade, enquanto espaço de encontro de saberes múltiplos, pode recuperar essa perspectiva de favorecer ao estudante a formação de uma consciência de que, enquanto humanos, e atingidos pelas nossas próprias descobertas científicas e tecnológicas, estamos em um processo contínuo de hominização, de autoconsciência e constituição.
Foi na universidade, no curso de Filosofia e de Teologia, na década de 90, que me interessei, junto com outros estudantes, em buscar os fundamentos da compreensão do ser negro na sociedade brasileira e no mundo. E ainda tem sido a universidade esse espaço privilegiado de construção teórica de minha luta diária, da busca de melhor contribuir na superação do racismo e de combate a todas as formas de diminuição da dignidade humana. 
Só em 2014, já são 27 aprovações de jovens quilombolas do Território de Vitória da Conquista em mais de 12 cursos da UFBA, do IFBA, da UFBA e da UEFS. Uma conquista promovida pela ação do Pré-Vestibular Quilombola, uma política pública mantida pela Prefeitura de Vitória da Conquista. É um grande passo para cada um deles, para cada uma delas. Em cinco anos, são mais de 160 quilombolas da região ingressando no ensino superior. E também um grande passo para as suas comunidades. 
Que este novo momento no qual o Brasil se insere seja de construção de uma emancipação política e social da população e que venha a nos ajudar a sermos cada dia mais uma sociedade melhor, no respeito à pluralidade e na democracia. 
Vida longa e muitas e conquistas ao nascente Coletivo de Cotistas Negros, Indígenas e Quilombolas da UESB! 
“Há que se cuidar do broto pra que a vida nos dê flor e fruto” (“Coração de Estudante”, de Milton Nascimento).
Flávio Passos, militante negro, professor na Rede Estadual de Ensino da Bahia e coordenador do Pré-Vestibular Quilombola, programa mantido pela Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista. Contato:br2_ebano@yahoo.com.br
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